Trinta milhões de crentes
feridos estão esquecidos nas
trincheiras
A igreja talvez seja hoje o
único exército do mundo
cujos soldados não voltam
para buscar seus feridos no
campo de batalha.
Ao contrário, substitui-os
rapidamente no batalhão e
segue em frente,
esquecendo-se que muitos
soldados de valor ficaram à
beira da morte pelas
trincheiras.
Caso o último censo do IBGE
tivesse incluído questão
sobre o número de
"desviados" no Brasil, o
resultado seria assustador.
Calcula-se que hoje existam
no País entre 30 milhões e
40 milhões de "desviados".
Por "desviados" entenda
pessoas que um dia tiveram
seus nomes no rol de membros
de algum grupo cristão, mas
que hoje estão à margem da
vida da igreja.
Estas pessoas - cuja boa
parte povoa hospícios e
presídios, ou carrega saco
às costas, vaga errante à
beira de estradas - um dia
confessaram alegremente a
Jesus Cristo como seu
Salvador e Senhor e no outro
se viram literalmente
jogados na sarjeta
espiritual.
Nesse contingente de
desviados há casos para todo
tipo de pessoas. Do
endurecido ao desprezado, do
chafurdado na lama pelo
engano do pecado ao
desesperado para sair dele,
mas sem ninguém para
estender a mão.
É desta classe de pessoas
que trata esta edição. De
pessoas desesperadas por uma
nova chance, mas sem ter a
quem recorrer porque, sabem,
o único lugar onde
encontrariam novamente a paz
para suas almas é a igreja,
mas ali, pensam, há santos
demais para admitir o
retorno de um filho pródigo
como ele.
Afinal, com ou sem motivo,
um dia foram expulsos
sumariamente. Seja porque
inadvertidamente cortaram os
longos cabelos ou caíram em
erros considerados "sem
volta" por sua igreja, como
o adultério.
Foram disciplinados,
escrachados, alijados da
comunhão e, não raro, se
excluíram ou foram
excluídos. Como Satanás,
foram expulsos do paraíso.
Como Caim, receberam uma
mancha na testa e foram
condenados a andar errantes
pelo mundo pelo resto de
suas vidas miseráveis. O
problema é que em seus casos
específicos, não foi Deus o
autor do juízo sumário.
Com tamanha carga sobre as
costas, voltar é passo
difícil, em algumas
situações, impossível.
- A própria igreja
discrimina os desviados -
constata Sinfrônio Jardim
Neto, líder do ministério
Jesus não Desistiu de Você,
de Belo Horizonte, dedicado
à restauração da vida dos
desviados.
- A igreja vê o desviado
como se fosse Judas
Iscariotes, que traiu a Deus
e a igreja. E o trata como
se fosse lixo que precisa
ser retirado daquele
ambiente. Mal sabe que o
desviado é como o ouro de
Deus que se perdeu na lama
podre. Está perdido na lama,
mas ainda é ouro e precisa
de gente interessada,
garimpeiros que estendam a
mão e vasculhem até
encontrá-lo".
Uma
igreja de 200 membros perde
outros 400 em 10 anos!
Na próxima vez em que for a
um culto, pare um instante e
olhe à sua direita e
esquerda. Agora, saiba que
daqui a dez anos é possível
que a senhora, o jovem
sorridente e o austero
senhor que estão em cadeiras
ou bancos próximos a você
cantando louvores estejam
completamente afastados da
igreja,amargurados com Deus
e entristecidos por algum
motivo.
De acordo com estatística do
pastor mineiro Sinfrônio
Jardim Neto, uma igreja de
10 anos de funcionamento que
tenha mantido média de 200
membros viu passar por seu
rol ao longo dessa década o
dobro desse número. Uma
evasão como essa explica a
conta fictícia do parágrafo
anterior.
Segundo as contas que têm
feito ao longo de suas
inúmeras campanhas em
igrejas brasileiras desde
1994, quando começou a
trabalhar com desviados, 400
pessoas que passaram por uma
igreja que tem média de 200
membros estão desviadas
hoje.
Em português claro e
chocante: a igreja permanece
com sua média de 200
membros, substituindo-os
naturalmente. Mas essa
rotatividade originada na
dificuldade de "fechar a
porta dos fundos" resulta ao
final de 10 anos em perda de
200% no número de pessoas.
Esses números, destaca
Sinfrônio Jardim, são
relativos apenas a
desviados. Aqui não estão
incluídos outros itens, como
mudança de membro para outra
igreja.
Expulso da igreja porque não
usava chapéu
As causas para o chamado
desvio de pessoas na igreja
são variadas, explica
Sinfrônio Jardim Neto. Desde
o abandono da fé em razão da
volta voluntária ao pecado
até a exclusão pela
liderança da igreja em
decorrência de coisas
pequenas mas consideradas
pecado, por eles.
Em suas viagens Sinfrônio
Jardim diz que encontra
situações de exclusão que
seriam hilárias se não
fossem tão perniciosas às
vidas das vítimas.
Pessoas que foram excluídas
por causa do legalismo
exacerbado de igrejas cujos
líderes zelosamente
disciplinaram com exagero
pequenas contravenções. Na
ânsia de limpar o pecado,
jogaram fora o "pecador"
junto com a água suja.
- Vejo gente sofrendo,
afastada da igreja por causa
de coisas pequenas, como ter
cortado o cabelo, ter
deixado a barba e até,
pasme, por ter sido visto
andando de bicicleta. Uma
vez, em Campos, no Rio,
conheci um homem que foi
expulso da igreja porque não
usava chapéu, como ordenava
o estatuto da igreja.
Falsas profecias levam
muitos ao desvio.
Outra causa para o
apartheid espiritual de
muitos é a decepção com
lideranças. O membro procura
alguém para confessar uma
fraqueza ou pecado e, em vez
de perdão e ajuda para
vencer o mal, recebe maior
ordenação.
As profecias falsas são
também causa importante de
desvio da fé.
Inúmeras pessoas naufragam
depois de receber profecias
falsas. A pessoa tem o filho
doente, por exemplo, e
recebe uma "palavra de Deus"
de cura. Pouco tempo depois
a criança morre. Ela fica
desesperada. Ou então ouve
que deve se casar com alguém
porque é vontade de Deus.
Obediente, casa-se e algum
tempo depois percebe que a
voz ouvida não era da parte
de Deus. Em vez de se
decepcionar com o homem,
decepciona-se com Deus e sai
da comunhão, explica o
pastor Sinfrônio Jardim.
E há, claro, o grande número
de pessoas que se aproxima
de Deus seduzidas por
propaganda enganosa. Chegam
porque alguém lhes prometeu
prosperidade aqui e agora,
mas não percebem as
implicações do discipulado a
Cristo. Querem as bênçãos do
cristianismo, mas nada de
porta estreita e caminho
apertado.
Querem sair do mundo, mas
levar o pecado a reboque.
"Querem a salvação, mas não
querem largar o pecado",
resume Sinfrônio Jardim.
Por último, a decepção
contra o próprio Deus é
causa de afastamento de
muitos. A pessoa é uma
crente fiel e, de repente,
alguém a quem ela ama morre,
por exemplo.
Nesse caso, se não tiver
alicerces firmes em Deus,
ela culpa a Deus pelo
infortúnio. Age como se Deus
tivesse sido ingrato com
ela, sempre tão fiel e,
portanto, a seus olhos,
merecedora de recompensa.
Poucas visitas ao desviado
resultam em maior condenação
Depois que experimentam a
expulsão do paraíso, poucos
conseguem encontrar lugar de
arrependimento. Pior é que
se forem depender de boa
parte da igreja para isso,
já terão na mão o passaporte
para o inferno.
Na pesquisa de Sinfrônio
Jardim Neto, entre 60% e 70%
dos desviados não recebem
qualquer visita de líderes
ou membros após sair da
igreja. São simplesmente
descartados ou substituídos
por outros membros.
O restante dos desviados
(entre 40% e 30%) recebe de
uma a três visitas, que se
revelam infrutíferas, porque
na maioria das vezes a
visita é de cobrança ou
condenação.
Em vez de amar o pecador e
odiar o pecado, os
visitantes lançam ambos na
cova profunda do inferno.
Jogam pedra, condenam.
Decretam o inferno-já para o
pecador. "É como bater de
vara sobre a ferida de
alguém... o ferimento e a
dor só vão aumentar",
compara Sinfrônio Jardim.
Hospícios e presídios estão
lotados de ex-crentes
Ainda segundo a pesquisa de
Sinfrônio Jardim, existem
três lugares onde sempre vai
se encontrar desviados: nos
hospícios, nos presídios e
na mendicância.
- Vá a um hospício e ali
você encontrará muita gente
internada que recita versos
bíblicos e canta canções
cristãs. Estas um dia se
afastaram, caíram em pecado
e os demônios tomaram conta
de sua vida. Ficaram
endemoninhadas.
- Depois visite um presídio
e você encontrará inúmeros
josués, elias e samuéis.
Detentos de nomes bíblicos,
que demonstram o berço
cristão. Ali você começa a
conversar com um deles e
descobre que é filho de
presbítero de igreja.
- Por último, passe próximo
a rodoviárias e estações de
trem outente conversar com
um andarilho de beira de
estrada. Pelo menos três
entre dez destas pessoas que
andam bebendo errantes,
sacos de bugigangas às
costas, já participaram de
uma igreja cristã. Ali, não
raro, você encontra homens
que um dia ocuparam solenes
púlpitos e pregaram o
evangelho.
E por que não voltam?
Sinfrônio Jardim entende que
a falta de perdão a si
próprio e da própria igreja
e o entendimento errado de
que o que fez é imperdoável
por Deus e afastam-nas cada
vez mais do ponto de
retorno.
- Mais da metade dos que se
desviaram tem problemas
sérios com o ressentimento e
falta de perdão. Não voltam
porque não conseguem
perdoar, ou não querem
perdoar ou acham que não
merecem perdão.
O peso que está sobre a
pessoa fica insuportável às
vezes, explica Sinfrônio
Jardim. Há denominações, por
exemplo, que pregam que quem
pratica adultério jamais
será perdoado. Ora, com um
decreto como esse na cabeça,
o pecador desiste de
qualquer tentativa de
reconciliação com o Deus
irado que lhe foi pintado e
se transforma em um monstro
na terra. Passa a praticar
os mais baixos pecados,
porque, pensa, se já está
condenado ao inferno por
toda a eternidade, resta
aproveitar seus dias na
terra.
Poucos saem em busca da
ovelha extraviada
Hoje a maioria das igrejas
não possui qualquer trabalho
específico para trazer suas
ovelhas desviadas de volta
ao aprisco. Ninguém pensa em
deixar suas 99 ovelhas e
sair atrás da centésima,
extraviada.
Sinfrônio Jardim também tem
explicação para esse
fenômeno. Afirma que na
visão expansionista de
muitas igrejas hoje é pouco
lucrativo deixar 99 ovelhas
e sair por lugares ermos
atrás de uma ovelhinha
extraviada que nem sabe se
está viva ou que talvez
esteja tão ferida que não
tenha chance de sobreviver.
- Muitos acham que não vale
a pena tamanho esforço, que
vão perder tempo. E, para
aliviar suas consciências,
usam o argumento de que a
pessoa já conhece a palavra.
Outros chegam a usar versos
bíblicos para justificar o
esquecimento. "Saíram de nós
porque não eram dos
nossos..." é um dos mais
recitados.
A falta de visão de
restauração descrita por
toda a bíblia é ignorada
nesses casos.
"Buscar ovelhas perdidas é
visão antipática em muitas
igrejas", lembra Sinfrônio
Jardim. "Isto porque quando
o membro sai, geralmente sai
falando mal da igreja ou do
pastor.
Acaba ficando mal visto
dentro da própria igreja
que, em vez de amá-lo e
perdoá-lo, passa a tratá-lo
como ovelha negra. Desta
forma, quando alguém se
dispõe a ir atrás dessa
ovelha perdida, torna-se
também impopular e corre o
risco de ser também mal
visto. E poucos estão
dispostos a isto".
Igreja Batista da Lagoinha
foi buscar três mil
desviados:
O retorno, com sucesso, dos
desviados à igreja depende,
basicamente, da atitude da
igreja. "A porcentagem de
desviados que retorna à
igreja não passa de 10% no
Brasil, mas se a igreja toma
uma atitude de ir buscá-los,
consegue até 80% de
sucesso", afirma o pastor
Sinfrônio Jardim.
Bons exemplos não faltam: a
Igreja Batista da Lagoinha,
de Belo Horizonte, já
reagrupou três mil pessoas
ao seu rebanho de trinta mil
pessoas em pouco mais de
dois anos. Ali, o pastor
César Teodoro dirige o
ministério "A centésima
ovelha", junto com o líder
principal da igreja, Márcio
Valadão.
A igreja Assembléia de Deus
em Brasília, dirigida pelo
pastor Elienai Cabral,
também tem obtido sucesso no
resgate aos seus desviados.
Outra Assembléia de Deus,
dirigida por Daniel Malafaia,
em Campo Grande (MS), tem
obtido sucesso semelhante.
"Fomos amados. Apenas
amados. E isso fez toda a
diferença"
O casal Valmir Soares e
Alina é exemplo perfeito de
filhos pródigos restaurados.
Conheceu a Deus, resolveu
seguir seus próprios
caminhos, reconheceu o
estado em que estava,
conseguiu forças para
voltar, foi recebido com
festa e experimentou a
restauração em suas vidas,
nesta ordem:
A primeira experiência de
Valmir e Alina com Cristo
aconteceu em 1987. Por um
ano e meio eles se
relacionaram com Deus e com
a igreja local que
freqüentavam, em Campinas,
SP. "O problema é que não
abri totalmente o coração
naquela época. O resultado é
que, ao longo do tempo, fui
esfriando, as coisas foram
ficando difíceis e eu acabei
tomando duas decisões
erradas, que resultaram no
meu afastamento da
comunhão".
- Aí não tem jeito, você
entra mesmo no pecado e fica
até pior. Comecei a praticar
coisas horríveis e a mentir
para minha esposa. Quando
pensava em voltar, havia
sempre a voz acusadora do
diabo, dizendo que eu era
indigno, que ninguém iria me
receber; enfim, que já não
tinha volta. Eu me lembrava
dos irmãos, da alegria e do
amor que desfrutávamos, mas
o pecado me impedia de
voltar.
- Outra coisa que me impedia
de voltar era a presunção,
lembra Valmir. "Dizia para
mim mesmo: tenho o Senhor na
Bíblia... não preciso
voltar. Eu não tinha o
entendimento de que é o
corpo quem nos sustenta".
- Mas, aí, Deus usou a vida
do próprio casal que nos
falara inicialmente de
Jesus, os irmãos Hélcio La
Scala Teixeira e Isabel,
hoje pastores em São José
dos Campos, SP.
Valmir relembra: "Um dia,
depois de uma conversa
franca com eles e de novo
convite, eu e minha esposa
resolvemos visitar a igreja
novamente. Enchemo-nos de
coragem e fomos. Era um
domingo de setembro, em
1992. Fomos recebidos,
literalmente, como filhos
pródigos. A maioria dos
irmãos nos abraçou, orou
conosco e, pela graça de
Deus, fomos tocados
novamente. Fiquei mais de
uma hora chorando num canto,
arrependido".
Hoje o casal está restaurado
e integrado na vida normal
da igreja.
- "O melhor de tudo, diz
Valmir, é que, em tempo
algum, recebemos o menor
olhar de acusação dos
irmãos. Nem mesmo por parte
daqueles que nos tinham
aconselhado anteriormente e
a quem não tínhamos dado
ouvidos. Ninguém disse: 'Eu
te avisei.' Fomos amados.
Apenas amados. E isto fez
toda a diferença".
Um
desvio monstruoso
• Há hoje, apenas no Brasil,
entre trinta e quarenta
milhões de pessoas que um
dia freqüentaram alguma
igreja evangélica.
• Uma igreja de dez anos,
que manteve média de
duzentos membros, viu
passar, por seu rol, o dobro
desse número. Isto é,
quatrocentas pessoas que
passaram por essa igreja
estão desviadas hoje.
• A porcentagem de desviados
que retorna à igreja não
passa de 10% no Brasil.
• Entre 60% e 70% dos
desviados, estes não
receberam qualquer visita de
líderes ou membros quando
decidiram sair da igreja.
• Entre 40% e 30% receberam
de uma a três visitas, que
se revelaram, na maioria das
vezes, de cobrança ou
condenação.
• Hospícios e presídios são
os lugares de destino de boa
parte dos desviados.
• De cada dez andarilhos,
três deles freqüentaram
alguma igreja um dia.
• A maioria dos desviados
(acima de 50%) é afetada
pelo ressentimento com sua
liderança
NOTA: Número
de desviados é desconhecido
pela Sepal:
O número estimado de 30
milhões a 40 milhões de
desviados no Brasil não é
corroborado pela Sepal -
Serviço de Evangelização
Para América Latina. Missão
internacional estabelecida
no Brasil há mais de 30
anos, a Sepal tem um
departamento especialmente
voltado a pesquisas
relacionadas ao meio cristão
no Brasil e na América
Latina.
A secretária do departamento
de pesquisas da Sepal,
Mércia Carvalhaes, explica
que hoje no Brasil nenhuma
instituição possui números
oficiais sequer sobre a
quantidade de cristãos no
Brasil e muito menos sobre o
número de desviados.
- Concordamos que há muitos
desviados no Brasil, mas é
impossível dimensionar a
quantidade, afirma Mércia
Carvalhaes. "Seria
necessário fazer pesquisa
específica a isso. E a gente
não conhece ainda nem os
evangélicos.
Queremos saber primeiro onde
estão as igrejas e as
pessoas que realmente as
freqüentam para então
levantar outros dados, como
o de desviados, por
exemplo". O movimento Brasil
2010, também da Sepal
(www.brasil2010.org) está
tentando localizar as
igrejas evangélicas no
Brasil.
- Ora, se não sabemos
quantos somos, como
saberíamos o número de
desviados, pergunta Mércia
Carvalhaes. "O que sabemos
apenas é que a porcentagem
de evangélicos no Brasil é
de 17% da população". O fato
é que 17% da população
brasileira corresponde a
cerca de 30 milhões de
crentes e que desse universo
muitos se desviaram ou se
desviam.
A pesquisadora da Sepal
informa que nem mesmo a
pesquisa do IBGE é
confiável, porque os
recenseadores da pesquisa em
2000 não foram treinados
para ver as diferenças de
religião. Ainda assim,
ressalva, os dados do IBGE
são os únicos disponíveis. |